Caindo de saudade
De repente eu acordei num grande tombo. Um grande tombo sim, pois caí do cavalo. Um cavalo chamado "Estrelo", bichão enorme, belo, corredor e bonzinho. Daqueles que a gente sobe e brinca de correr e chegar longe. "Estrelo", que saudade me dá. Pior que um dia me derrubou. Sim, caí do cavalo, não é assim que se fala?
Lá ia eu, todo folgado, correndo no "Estrelo" nas ruas arenosas de Quatá. Quatá, para quem não sabe, é um município lá longe, por onde passava a Estrada de Ferro Sorocabana. Para lá de Assis, antes de Rancharia e de Presidente Prudente. Naqueles tempos de "eu criança", a gente saia daqui da capital, São Paulo, embarcava num trem da Sorocabana, bem ali, quase no centro da Capital e ficava rodando horas e horas naquele trem que apitava muito e corria pouco.
" Viagem "
Quem estivesse no trem, sairia da Capital às dez da noite, e o danado do trem, como diz uma música de muito sucesso nos tempos de antigamente, seguia indo e mais indo, apitando, parando, seguidas vezes, gente subindo e descendo durante as tantas horas e mais tantas horas, para chegar em Quatá no dia seguinte, ali pelas duas da tarde.
Nossa! E foram tantas viagens que eu fiz que nem me aguento. Mal me lembro. Mas tenho saudade. E o apito do trem me acorda até hoje.
Tanto é que, na verdade dos meus sonhos, neste momento estou no lombo do Estrelo, cavalgando nas ruas de Quatá. Meu pai tinha um sítio, que era quase fazenda lá no Quatá. Não sei quantos alqueires de terra, nem sei dizer daquele montão de pés de café, milhares de pés. Isso mesmo, sei lá da riqueza daquilo, do montão de árvores e de belezas que continuam na minha alma e na minha imaginação. Quanto valeriam?
" Tanta saudade "
Sei lá. Eu era criança e o Estrelo continua trotando comigo naquelas ruas de tanta areia. Areia sim, a região era arenosa, como se diz nas técnicas do conhecimento de quem planta ou vive disso. Eu no lombo dele, nunca esqueci do tombo.
Nossa, que saudade. Saudade da grossa. Saudade que nunca quis sair da minha alma. O Estrelo deve ter morrido, claro, tanto tempo faz, mas a saudade dele continua na minha alma. Da mesma forma que Quatá não me sai da lembrança. Às vezes dá vontade de chegar por lá, andar por lá, ir até a fazenda de café, mas sem o Estrelo não vai ter graça.
A vida é isso, não? Vai nos levando por aqui e por ali, mostrando o que é bonito, punindo com algumas tristezas, amigos que chegam, amigos que partem, sonhos, fantasias, tombos de lombos, quedas de árvores, a gente tem que enfrentar tudo e nem vale reclamar. Só reclamo que nada disso que era tão bom volte. Nada dos risos, dos sonhos, das alegrias, dos amigos que foram para lá, que partiram para bem longe. E o Estrelo, hein? Deve estar entre as estrelas do céu. Quem sabe?
" Vou até lá "
Qualquer dia destes eu saio aqui de casa e dou um pulo até Quatá. Vou ver onde ficava o Estrelo, vou ver onde eu jogava bola na rua, bem na rua em que eu morava, até que veio um ser meio desumano, que se fazia passar por ¨guarda de alguma coisa¨, pois naquele tempo não existiam tantos guardas assim, e catou a bola que eu jogava.
Chorei, chorei muito até, mas me lembro muito bem da cara brava que o cara, o tal cara de guarda fez.
Danado catou a bola e levou, dizendo que a rua não era lugar para se jogar bola. Tudo isso dito e falado, quase gritado, para a criança que eu era.
Criança que ficou chorando sem a bola que era sua.
" Choro chorado "
Chorei até o momento em que meu pai chegou em casa. E, não deu outra. Lembro bem da cena. Seo Manoel de Oliveira Barros, meu pai, caboclo alagoano viu o choro do filho e soube do tal guarda que guardava alguma coisa ou sei lá o quê.
Seo Manoel mal entrou em casa e saiu quando soube da bola levada. E lá foi ele atrás do guarda.
Não demorou quase nada, lá estava o guarda de volta, vinha trazer a bola que havia levado. Devolveu e saiu ligeirinho porque o Seo Manoel, alagoano daqueles, da terra de Lampião, o Rei do Cangaço, não tinha gostado dessa história de tirar bola de criança.
Nunca mais eu vi a cara desse cara que nem tinha cara de guarda e foi se guardar lá pelos quintos dos infernos, como se dizia antigamente.
Ora bolas.
Saudade danada do Seo Manoel das Alagoas.
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