Segunda, 18 Ago 2025

Lavando a jato

Como diria Drummond, o poeta, tinha uma estrelícia no caminho, no caminho tinha uma estrelícia. E a estrelícia enfeitava esse caminho, uma grande avenida que vai do bairro onde moro para o centro da minha cidade. Acho que não é todo mundo que se liga em estrelícias. Aliás, penso e sofro com isso, não é todo mundo que se liga no mundo das flores ou no encanto que as flores jogam no mundo, tanto que quase todo o mundo joga as flores pro lado, como aconteceu com um par de estrelícias as tais que estavam no caminho que vai da minha casa para o centro da minha cidade. Pois quando eu vi, lá estavam as estrelícias arremessadas como se fossem o povo brasileiro para as margens de uma obra qualquer que andam executando no meu país, e por que não dizer, também na minha cidade.

Essas tais obras, em fase de realização, substituem obras mal executadas, obradas recentemente à custa dos já escassos dinheiros públicos, enquanto outras obras necessárias nem são sonhadas pelas indignas autoridades que nunca autorizam qualquer coisa mais séria e indispensável para o povo, exemplo claro a moralidade nacional. Mas, enfim, sei que as estrelícias foram arrancadas de seu destino e jogadas, mais que isso, atiradas em alvos menos recomendáveis. Ficaram caídas à espera de alguém que as salvasse de um eventual atropelamento, pois foram atiradas para um canto de calçada, rente à rua, ao alcance de tantos pneus malvados de automóveis, caminhões e ônibus que trafegam por ali.

"pneus tão malvados"

Imoralidade por imoralidade, o momento é de denúncias: ainda que caídas e largadas ao destino implacável, as tais estrelícias foram roubadas. Não sei se sabem, mas custam caro as estrelícias. E põe caro nisso. A bem dizer têm o preço que merecem. E merecem muito pela sua beleza. Tidas, havidas, comentadas e muito conceituadas as estrelícias receberam o nome científico de "Strelitzia reginae". São originárias da África do Sul, altamente recomendadas em dicas de jardinagem e paisagismo pela sua formosura, tanto que foram introduzidas e fizeram sucesso lá na Europa já há mais de duzentos anos, conforme nos contam os historiadores. Produzem uma flor que imita um pássaro, daí serem chamadas de "Ave do Paraíso", um encanto. Quem conhece indica a sua elegância, exuberância e excentricidade que deixam um toque de requinte no ar. Pois, repito, as estrelícias foram arrancadas do seu canto por um bruto trator conduzido por um suave tratorista (tão suave que cuidou de arrancar as estrelícias com todo o carinho e delicadeza, apesar de usar apenas a pesada pá que o trator conduz. Já pensaram na suavidade do ato? Um trator arrancando estrelícias. Aplausos para o tratorista. De pé, por favor!).

"o roubo da estrelícias"

Porém, repito, alguém roubou as estrelícias atiradas às feras do volante que passam raspando nas sarjetas colocando pobres plantas em risco fatal, fora as pessoas, mas isso já é normal. Não sei quanto à municipalidade da minha cidade gastou no plantio das estrelícias naquele canto onde elas foram colocadas nas tais obras mal obradas num passado recente. Uma pequena fortuna, com certeza. Pois uma simples muda de estrelícia custaria hoje por volta de 80 reais. Como se tratou de um maço de mudas, nem sei quantas, imagine-se o quanto foi gasto só nisso, fora as tais obras mal obradas, a ponto de agora estarem sendo destruídas para serem reconstruídas, mas isso, aparentemente não conta, pois não só a minha cidade como o meu país não se cansam de obrar obras mal obradas e sempre bem cobradas, desvios à parte. Conta sim a beleza das estrelícias que estiveram a pique de serem esmagadas ou trituradas, não fosse a maestria de um tratorista já citado, que certamente tem um coração de ouro e um dom artístico, amante das flores perdidas numa cidade mal conduzida.

Pois eu saudei o tratorista e saúdo o momento feliz e desprendido, a inspiração que me levou a ver as pobres estrelícias jogadas ao vento, ao tempo, ao léu, ao abandono geral das sarjetas e me confesso um ladrão. Sim, fui eu quem roubou as estrelícias jogadas. Roubei antes que o tempo e o vento e a chuva e os bandidos que rolam no desfigurado asfalto da minha cidade as matasse por esmagamento. Roubei sim e repito, salvei as que pude salvar. As outras pobres já tinham sido trituradas pelo trânsito indiscriminado que vai e vem a troco de nada, pois nunca se sabe para onde estamos caminhando ou até dirigindo, já que não passamos de estrelícias jogadas nas estradas da vida.

"estrelícias das estradas da vida"

Alguém deve ter visto este maluco defensor de uma natureza tão espezinhada caminhando apressado, cruzando avenida importante com um maço de estrelícias no colo, correndo feito um louco para fugir do iminente atropelamento eventualmente provocado por um trânsito desnaturado, que nem estrelícias respeita, fugindo do guarda que não me viu, do tratorista que viu e sorriu, afinal, as estrelícias que ele havia poupado e salvado, estariam eventualmente em boas mãos e braços. E estavam mesmo. Corri com elas para a minha casa. Plantei-as no jardim ao lado de mangueiras, goiabeiras, limoeiros, laranjeiras, bananeiras, damas-da-noite, jabuticabeiras, nogueiras, manacás da serra e outras árvores mais que tenho em casa. Não sei se vingam, as estrelícias são muito delicadas, mas estão lá, fincadas no meu chão.

Como confessei meu crime, esse roubo de estrelícias arrancadas pelo progresso mentiroso e jogadas ao léu para que os pneus dos carros de passagem insuspeita trafegassem por cima, espero ser perdoado diante desta delação premiada inusitada. Mereço perdão ou não? E que a lava jato mande investigar quem mandou plantar as estrelícias tão inutilmente, numa obra tão mal obrada no passado, como já foi anteriormente denunciado.

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