Llorando nuestras peñas
Até que ponto seria importante lembrar o nome daquela praça? Talvez fosse bobagem ficar aqui me preocupando com um simples nome, ao invés de contar logo a história que tenho na cabeça. Coisas que vi e ouvi e guardei para registrar e esparramar nos sentimentos de uma crônica. Uma praça é uma praça, afinal de contas, com todas as diferenças ou semelhanças que as praças carregam entre si.
Admito, no entanto que aquela praça me parecia diferente. Uma praça plantada bem no meio do bairro Recoleta, em Buenos Aires. Uma praça onde a cidade enterra boa parte de seus mortos, pois ela abriga um cemitério. Uma praça visitada por boa parte dos moradores locais que vão à missa, na igreja ao lado, para rezar sua vida e seus mortos, enfim, uma praça.
Talvez fosse importante sim lembrar o nome e a história da praça. Pesquisei na memória, fui aos livros, cheguei à Praça da Basílica de Nuestra Señora del Pilar, homónima da Basílica de Zaragoza, na España, que, por supuesto, como dizem os locais, se llama Catedral-Basílica de Nuestra Señora del Pilar de Zaragoza. E assim fiquei sabendo que a igreja da praça a Basílica de Nuestra Señora del Pilar en Recoleta era parte do convento de franciscanos recoletos, foi construída no ano de 1732 e é o segundo templo mais antigo de Buenos Aires. Eu estava na praça diante da história.
"uma praça plantada"
Assustei mais ainda quando vi que a praça era verde e viva, muito viva. Cheia de gente. Gente na igreja, gente em visita ao cemitério, gente pintando, gente fazendo arte, gente vendendo arte, gente comprando arte, gente cantando arte, a praça era vida naquele domingo de Buenos Aires. A Praça da Recoleta, ou o nome que a praça tivesse era linda, rasgada por caminhos, atalhos, pequenas vias onde, aos domingos, artesãos expõem suas artes, seus feitos, suas histórias, suas coisas, suas vidas. Uma praça do povo e dos artistas. Ou, num dizer melhor, a praça onde o povo se encontra com seus artistas e onde os artistas se encontram com o seu povo. Eu estava na Praça da Recoleta, tivesse o nome que tivesse, a praça tinha vida.
Andei por ali andei, muito andei, a praça inteira eu andei. Olhei para a cara dos artistas, cada cara, cada artista. Vi as artes feitas e vi como se pode fazer arte a partir do nada. Arte feita com um pedaço de pau, um pedaço de metal, uma linha, um barbante, uma pedra, pedraria, bolsas, cristais, anéis e colares. Franjas, toalhas, papéis, nomes, gravados, gravações, risos e cores, angústias de artistas que criaram e criam querendo passar adiante. Muitos vivem daquilo. Muitos viveram daquilo. Muitos já morreram daquilo. Muitos morreram sem que seu sonho fosse verdade. O sonho do reconhecimento. O sonho do aplauso. O artista é pago com aplauso, não mais que aplauso. Ainda que o aplauso não seja tudo na vida dura, pois a vida exige até comida para se comer e casa para se sustentar.
"vida de artista"
O artista vive do nada. O artista vive do sonho do aplauso sim, vive da arte e a arte, que é viva, nem sempre dá a vida melhor que o artista merece. Para muitos o reconhecimento só vem na morte. A morte que castiga é o aplauso que o artista nem chegou a ter em vida. Divaguei olhando aquela senhora que fazia arte em bolsas. Ou daquele velhinho que fez artes com facas, colheres, garfos enrolados, entrelaçados formando pulseiras, anéis e coisas que o valham. Trocados por poucos reais, ou pesos, ou dólares que não pagam nada, pois o sonho não tem preço.
Divaguei, divaguei, divaguei, admito. Andei por aquelas alamedas da praça olhando nos olhos dos artistas, aplaudindo com os olhos. Eu sei que eles entenderam que o meu olhar era de aplauso. Olhar por olhar não enche a barriga, mas enche o ego de ser artista. Aplausos com o olhar, besteiras.
E eis senão quando, num espaço mais livre da praça, surge uma pequena mulher que se espalha. Tem traços de gente local. Tem traços de pueblo, tem traços de cabocla, tem traços de índia, de gente dos campos gelados de lá. E se instala em um banco do jardim da praça. E monta o seu palco. Uma caixa de som, violão nos braços, solta a voz penetrante. Encanta, sim, e canta, encantada, encantando. Voz da alma. Suave, pausada. Voz que conta, que comove, que mexe, faz burburinhos na alma dos constantes circunstantes.
Descobri um canto, um banco de praça, me sentei e abri os ouvidos ao máximo volume para não perder um nada. Me deixei levar pelo canto encantador. Cantou coisas de Violeta Parra, cantou coisas de Atahualpa Yupanqui, cantou coisas de caipiras como eu, só que caipiras locais, caipiras tão sofridos como os daqui. Caipiras sem rumo e nem prumo, sem ter onde cair ou como se levantar, caipiras como todo caipira que carrega a alma no canto ou o canto na alma.
"caipira carrega a alma"
Luz era o nome dela. Luz Rodrigues, parece. Ou fosse o que fosse, que nome tivesse, era Luz a cantora e o seu nome. Era canto o seu encanto.
Tinha um pequeno chapéu no meio das suas coisas. O povo abismado com tão lindo canto, jogava moedas e notas no chapéu a cada canto. Encantada, encantava. A missa da igreja acabou, o movimento da praça aumentou, mais gente ouvindo, mais gente sonhando com aquele canto. Mais um dinheirinho pingando. Talvez o sustento da Luz. Eu parecia encantado, não nego.
E me encantei muito mais ao final de uma canção mais dolente, quando, sem mais nem menos, aqueles dois mendigos postados nas alamedas, meio sujos, muito rasgados, talvez um pouco bêbados, que eu já havia visto buscando ganhar moedas para seu sustento ou para a sua uca, seu vinho, sua cana, para a bebida que entontece a vida, esquálidos, talvez mortos de fome, vieram os dois, um apoiado no outro, aplaudir de perto o canto da Luz. Sem mais, despejaram suas poucas moedas no chapéu que recebia o pagamento da cantora.
Jogaram ali o nada que tinham ganhado, o dinheiro da pinga, do pão, do arroz, do nada para comer. Pagavam o encanto da arte da artista que cantava a vida. E saíram aplaudindo, sem suas moedas, os pobres. Os aplausos cresceram na praça. Chorei. Tem pedaços na vida que a dor, a arte e o sofrimento nos une, e aí sim, somos todos hermanos. Que rico. Sigue cantando Luz, que yo seguire llhorando nuestras peñas.
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